segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Orò Ọ̀sẹ́ - Ritos de renovação do tempo (parte 1)

Àgò yé ẹ̀gbọ́n

Todas as Tradições de Matriz Africana (Batuque, Candomblé, etc.) realizam ritos anuais de renovação do tempo. Estes ritos são chamados de Ọ̀sẹ́ (pronuncia-se óssé). Este rito é realizado em três partes: purificação, reconstrução dos altares e renovação das imolações. nesta postagem falarei da purificação.

Há algum tempo atrás, na época em que o Orkut era muito mais ativo que o Facebook, surgiu um questionamento numa das comunidades de discussão do Batuque: "a limpeza de final de ano é importante ou é apenas o 13º (salário) do/a Pai/Mãe de Santo?" Talvez este seja um questionamento que passe pela cabeça de muitos iniciados.

A ignorância e a decorrente especulação com relação a importância da limpeza de final de ano se deve por alguns fatores que se apresentam em nossos tempos. Destaco os seguintes:

  • A falta de formação afroteológica;
  • O sistema capitalista;
  • A relação mercantil - e não religiosa - que cada vez mais tem se apresentado nas relações humanas dentro de uma comunidade.

Explico.

A falta de conhecimentos afroteológicos, ou seja, a falta de um conhecimento teórico onde as tradições de matriz africana sejam as norteadoras teológicas de suas próprias práticas, complica a sua explicação. No passado o conhecimento era apenas o inciático. Com o passar do tempo perguntas começaram a ser feitas e então respostas tinham que ser dadas. Contudo, os nossos ancestrais levaram essas respostas para o túmulo nos deixando órfãos de conhecimento teológico. E como órfãos, logo procuramos pais adotivos. Enveredamos pela teologia católica e, depois, espírita afim de obtermos essas respostas que nos são tão caras. Hoje temos acesso aos conhecimentos africanos e, com isso, podemos elaborar nossa própria Teologia sem depender de subterfúgios alienígenas à África. Apreender estes conhecimentos teóricos é tão importante quanto a aprendizagem da prática, pois ele dá sentido à própria prática. Um sentido totalmente nosso.

O sistema capitalista que interpenetra nossa sociedade e invade nossos terreiros com seus valores monetários, ou seja, o valor de algo é seu preço, desumaniza as relações entre as pessoas e destitui nossos ritos de sacralidade, tornando-os mecânicos, robotizados. O ato de pagar pela realização de ritos, uma prática secular africana, é ressignificada em nossos tempos pelo capitalismo onde o dinheiro tem mais valor que as pessoas. Mais valor até que o próprio sagrado do qual se vale. Neste sistema de coisas o sagrado não é o fim, mas o meio pelo qual se alcançam os objetivos que, para muitos, é o de ganhar dinheiro.

Como fazemos parte de uma comunidade que mantém e reproduz os valores civilizatórios africanos, que são praticamente opostos à civilização ocidental, mas estamos ilhados por estes pressupostos civilizatórios cujo sistema político e econômico é o capitalismo, acabamos por estabelecer nossas relações a partir dele, sobretudo quando "entramos" para a tradição, mas não nos convertemos à ela. Assim o sacerdote passa a ser, na mentalidade dessas pessoas, um prestador de serviços enquanto o filho/a de santo se coloca como "cliente". Nesta condição o filho/cliente sempre verá a relação que tem em sua comunidade como de cunho mercantil. Estabelecerá apenas uma relação de comércio pagando para obter benefícios. Este é o filho/a que se nega a, por exemplo, trabalhar no terreiro nas datas festivas, sobretudo quando este trabalho envolve atividades consideradas pela sociedade capitalista como subalternas (como as de limpeza de ambientes, banheiros, panelas, etc.). Para este tipo de pessoa "entrar" e "sair" de uma comunidade tem o mesmo peso. Para estes, pegar suas obrigações e ir embora não se relaciona com o estabelecimento de uma relação com o sagrado naquele local, mas sim de ser dono de algo que se pagou para ter.

É a conjunção de todos estes fatores que possibilita a pergunta feita no Orkut há anos atrás.

A limpeza de final de ano é um rito sagrado importantíssimo para nós, pois nos purifica, redime algumas de nossas falhas no decorrer do ano para que entremos no próximo renovados e limpos, enfim purificados. Com a limpeza nos tornamos novas pessoas novamente (desculpem-me a redundância). Assim o nosso tempo é restituído. Entrar o novo ano sem ter feito essa limpeza é dar continuidade às falhas. Este rito é a garantia de que começaremos o novo ciclo anual purificados espiritualmente.

Àṣẹ o! 

sábado, 15 de novembro de 2014

Orò Rúbọ Òrìṣà Èṣù - Rito de renovação das oferendas do Òrìṣà Èṣù (Bará)

Àgò yé ẹ̀gbọ́n. 

Um dos Òrìṣà mais importantes cultuados na Nação Ijẹ̀ṣà do Batuque do RS é Èṣù. Mais conhecido no Batuque como Bará, esta divindade é a grande reguladora e renovadora das energias universais e multiplicadora da dinâmica cósmica.

Toda segunda-feira, dia da semana que lhe é consagrado, são renovadas suas oferendas. As velhas são despachadas na encruzilhada próxima ao Ilé juntamente com a água da quartinha (talvez por isso este orò também seja conhecido como "despachar o Bará", na verdade o que é despachado são as
oferendas já velhas) e são arriadas novas oferendas diante dos seus assentamentos, assim como é renovada a água da quartinha.

A quartinha é símbolo do poder gerador feminino e faz parte dos assentamentos de todos os Òrìṣà. Por isso tem o formato simbólico de um útero. A água é fonte de vida e é a representação mítico-simbólica do sangue menstrual. O sangue menstrual é o símbolo do poder de geração de vida e pertence às Ìyá-mi Òṣòròngá, as veneráveis Senhoras Ancestrais das mulheres e donas do poder da fecundidade feminina. A água da quartinha é sempre renovada anualmente, no caso dos demais Òrìṣà, mas especificamente para Èṣù as renovações se dão semanalmente devido ao grande trabalho que esta divindade tem na manutenção, construção e reconstrução do mundo e dos seres vivos.

Este rito semanal é de extrema importância para uma Casa de Òrìṣà. Ele abre os caminhos, dinamiza e multiplica o Àṣẹ.

Contudo, este orò não pode ser realizado em dias chuvosos, pois água corrente é uma restrição desse Òrìṣà. O porquê é muito simples: já tentaste correr dentro d'água? A água em abundância retarda os movimentos e Èṣù não conseguirá realizar suas funções nestas condições.

É um rito obrigatório para todos os Ọmọ̀rìṣà que possuem assentamento de Èṣù (Ìyàwó - pronto) numa comunidade tradicional de matriz africana.

Àṣẹ o!
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